"Disciplina é liberdade
Compaixão é fortaleza
Ter bondade é ter coragem"







Os versos citados acima são da música Há tempos da banda Legião Urbana. O vocalista desta banda escolheu seu nome artístico, Renata Russo, em homenagem ao filósofo Jean-Jacques Rousseau.

ROUSSEAU E SUA PROPOSTA DE EDUCAR AS CRIANÇAS SEM VIOLÊNCIA




UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIÁS
FACULDADE DE EDUCAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO



Maria Aparecida Alves da Silva


Monografia apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Faculdade de Educação da UFG, ministrada pelo professor doutor Ged Guimarães, como requisito parcial para aprovação na disciplina Filosofia e Educação: Rousseau.

Goiânia, maio de 2007.

Resumo

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Esta monografia tem como objetivo estabelecer uma relação entre a concepção de mundo e de homem desenvolvida por Rousseau e sua proposta de educação não coercitiva, ou seja, sem métodos disciplinares violentos. Duas idéias desenvolvidas no Discurso sobre as desigualdades são destacadas, a da bondade e da igualdade original inscrita na natureza humana. A conservação de si mesmo, a piedade natural, a liberdade, a perfectibilidade são conceitos eleitos como chaves para a compreensão da educação negativa, do qual Rousseau propõe na obra ‘Emílio ou Da Educação’. Fragmentos de textos desta obra são recortados com a finalidade de ressaltar o entendimento de Rousseau sobre a educação e a infância. Alguns episódios do Emílio são evidenciados para demonstrar por que, na visão de Rousseau, os métodos coercitivos, como as punições violentas, não devem ser aplicados em sua proposta educativa.

Palavras-chave: mundo; homem; infância; educação; violência.

INTRODUÇÃO

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A Academia de Dijon, no ano de 1753, propôs para a premiação do ano seguinte a questão: Qual é a origem da desigualdade entre os homens, e é ela autorizada pela lei natural? Para responder essa questão Jean-Jacques Rousseau, que ganhara a premiação do concurso anterior, publica, em 12 de junho de 1754, o “Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens”. Esta obra é um marco fundamental, pois apresentou uma concepção de homem que rompeu com os modelos filosóficos predominantes na época.

Rousseau, ao criar hipoteticamente o Estado de Natureza do homem, conclui que a desigualdade presente nas relações humanas não é legitimada pelas leis naturais. No seu discurso sobre a desigualdade entre os homens duas idéias gerais são destacadas. A primeira, desenvolvida por Rousseau, é de que existe uma bondade original na natureza humana. Bondade que é corrompida, pouco a pouco no processo de evolução social dos homens. A segunda idéia é de que há uma igualdade original inscrita no homem natural. Todos os homens nascem iguais ante a natureza. No entanto, as diferenças físicas presentes em cada ser humano progressivamente destitui a igualdade natural, produzindo assim as desigualdades sociais.

As desigualdades físicas ou naturais se expressam nas diferenças de idade, de forma corporal, de condições de saúde e das qualidades do espírito e da alma. A outra forma de desigualdade, que não possui uma base natural, é denominada por Rousseau de moral ou política. Esta é estabelecida por convenções humanas e consiste no privilégio de alguns em prejuízo de outros. Para Rousseau, esta última forma de desigualdade é um produto humano, ela é eminentemente artificial.

1.1 A bondade original da natureza humana
Rousseau rejeita a formulação defendida por Thomas Hobbes, de que na condição natural, sem a presença do Estado, os homens vivessem em permanente estado de “guerra de todos contra todos”. No seu entendimento, Hobbes não conseguiu identificar o verdadeiro Estado de Natureza do homem e argumentava: “o erro de Hobbes deve-se a ter levado em consideração necessidades tardias para julgar o estado original do homem. O homem primitivo não poderia ser mau, uma vez que não sabia o que era bom e mau” (ROUSSEAU, 1974, p. 260).

Com o objetivo de identificar o verdadeiro Estado de Natureza, feito não alcançado por Hobbes, Rousseau retroagiu há tempos remotos e hipoteticamente elaborou a tese de que o desenvolvimento humano deu-se em diferentes estágios. A vida do homem, na sua origem, é puramente animal e se limitava às sensações imediatas. Os acontecimentos principais são a alimentação e a sexualidade. As relações humanas ocorriam sempre de forma descontínua. Existia no homem um amoralismo integral. Ele não era nem bom, nem mau. Ignorava, desta forma, as virtudes e os vícios. Sobre essa fase inicial da vida do homem, Rousseau dizia: “não iremos, sobretudo, concluir como Hobbes, que por não ter nenhuma idéia de bondade, seja o homem naturalmente mau; que seja corrupto porque não conhece a virtude” (ROUSSEAU, 1974, p. 258). E continuava sua argumentação:

A consciência é, pois, nula no homem que nada comparou e que não viu suas relações. Nesse sentido, o homem só conhece a si mesmo; ele não vê seu bem-estar oposto conforme ao de ninguém; não odeia nem ama nada; limitado exclusivamente ao instinto físico, é nulo, e animal; foi o que fiz ver em meu Discurso sobre a desigualdade (ROUSSEAU apud FORTES, 1989, p. 12-13).

Nesse primeiro estado o homem e a natureza eram elementos indivisíveis. Apesar da inexistência de uma consciência moral, com noções de bem e de mau, dois princípios prevalecem entre os homens e entre estes e a natureza: o da conservação de si mesmo e o da piedade natural. Rousseau denominava esses princípios de moral natural. A conservação de si mesmo é a única paixão que nasce com o homem. Na carta enviada ao arcebispo de Paris, Christophe de Beaumont, datada de 20 de agosto de 1762, Rousseau aprofundava sua argumentação sobre a tese da bondade original da natureza humana e sobre o princípio da conservação de si mesmo:

O princípio fundamental de toda moral sobre a qual raciocinei em todos os meus escritos (...) é de que o homem é um ser naturalmente bom, amando a justiça e a ordem; que não há perversidade original no coração humano e que os primeiros movimentos da natureza são sempre retos. Fiz ver que a única paixão que nasce com o homem, a saber, o amor de si, é uma paixão em si mesmo indiferente ao bem e ao mal, que não se torna boa ou má a não ser por acidente e segundo as circunstâncias nas quais se desenvolve. (ROUSSEAU apud FORTES 1989, p. 12).

Paul Abrousse-Batisde e Lorival Gomes Machado, na introdução do Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens (1974), apresentam o que eles denominam de princípio da moral natural. O amor em si próprio e a piedade natural constituem para esses leitores de Rousseau a moral natural.

1.2 Primeiro princípio da moral natural: a conservação de si mesmo
Para Rousseau, a conservação de si mesmo necessariamente não implicava na destruição do outro. Ele considerava que Hobbes errou no seguinte ponto: para garantir a auto-conservação, o homem tinha que lutar com os demais, matando-os ou escravizando-os. Ainda segundo Rousseau, o amoralismo integral, que é uma característica do primeiro Estado de Natureza, não implicava em maldade. A sua ponderação era de que a inexistência da bondade não resultava na presença da maldade. Sobre isso ele dizia:

Hobbes não viu que a mesma causa que impede os selvagens de usar a razão, como o pretendem nossos jurisconsultos, os impedem também de abusar de suas faculdades, como ele próprio acha; de modo que se poderia dizer que os selvagens não são maus precisamente porque não sabem o que é ser bons, pois não é nem o desenvolvimento das luzes, nem o freio da lei, mas a tranqüilidade das paixões e a ignorância do vício que os impedem de proceder mal (...) (ROUSSEAU, 1974, p. 258).

A noção de direito sobre os bens do mundo, da natureza externa, não levava o homem natural necessariamente a almejar um domínio universal. Pode-se muito bem zelar pela própria conservação sem prejudicar a de outrem. De acordo com Rousseau, Hobbes não conseguiu perceber que o homem, como os demais animais da natureza, tende a suavizar a ferocidade de seu amor-próprio ou de seu desejo de conservação por sentir uma repugnância inata com o sofrimento de seus semelhantes. Neste momento, um segundo princípio da moral natural é descrito por Rousseau: a piedade natural.


1.3 Segundo princípio da moral natural: a piedade
O homem é naturalmente indulgente. A piedade é um movimento da natureza, anterior a qualquer reflexão. A piedade, na visão de Rousseau, não era uma virtude eminentemente social. Ele acreditava que a piedade era mais forte no Estado de Natureza, “pois a piedade representa um sentimento natural que, moderando em cada indivíduo a ação do amor de si mesmo, concorre para a conservação mútua de toda a espécie” (ROUSSEAU, 1974, p. 260). Para fundamentar sua argumentação da existência de uma piedade natural, Rousseau citava como exemplo ilustrativo alguns comportamentos animais:

Falo da piedade, disposição conveniente a seres tão fracos e sujeitos a tantos males como o somos; virtude tanto mais universal e tanto mais útil ao homem quando nele precede o uso de qualquer reflexão, e tão natural que as próprias bestas às vezes são delas alguns sinais perceptíveis. Sem falar da ternura das mães pelos filhotes e dos perigos que enfrentam para garanti-los, comumente se observa a repugnância que têm os cavalos de pisar num ser vivo. Um animal não passa sem inquietação ao lado de um animal morto de sua espécie; há até alguns que lhes dão uma espécie de sepultura, e os mugidos tristes do gado entrando no matadouro exprimem a impressão que tem do horrível espetáculo que o impressiona (ROUSSEAU, 1974, p. 259).

A piedade natural, sem auxílio da reflexão, levava os seres vivos a socorrerem aqueles que sofrem. No Estado de Natureza ela ocupa o lugar das leis, dos costumes e das virtudes. Para Rousseau, a máxima da justiça racionalizada: “Faze o outrem o que desejas que façam a ti” (ROUSSEAU, 1974, p. 260) – contém um relativo grau de perfeição. No entanto, outra máxima que se inspirava na bondade natural, era mais útil e mais perfeita: “Alcança o teu bem com o menor mal possível para outrem” (ROUSSEAU, 1974, p. 260). Rousseau acreditava que a piedade natural era muito vantajosa, pois ela conseguia equilibrar e compensar o primeiro princípio da moral natural: a conservação de si mesmo.

Rousseau avaliava que o médico holandês Mandeville acertou ao demonstrar, em sua Fábula das Abelhas, que os homens não passariam de monstros se a natureza não lhes tivesse conferido a piedade para apoiar a razão. Errou, porém, ao não entender que todas as virtudes sociais possuem suas raízes na piedade natural.

1.4 A igualdade original inscrita no homem natural
No entendimento de Rousseau, a desigualdade é quase nula no Estado de Natureza. As desigualdades presentes nesse estado eram apenas de ordem física. Portanto, as desigualdades entre os homens não se originavam das leis naturais e sim dos hábitos, da educação e, consequentemente, da sociedade. Ao descrever o percurso do desenvolvimento humano, Rousseau delimitava uma nítida distinção entre as desigualdades naturais e as sociais:

Como não tinham entre si nenhuma espécie de comércio, como conseqüentemente não conheciam nem vaidade, nem a consideração, a estima ou o desprezo; como não possuíam a menor noção do teu e do meu, nem qualquer idéia verdadeira de justiça; como consideravam as violências, que podiam tolerar, como um mal fácil de ser reparado e não como uma injúria que deve ser punida; e como não pensavam na vingança senão maquinalmente e no momento, à maneira do cão que morde a pedra que lhe atiram – suas disputas raramente teriam conseqüências sangrentas, se não conhecessem assunto mais excitante que o alimento (ROUSSEAU, 1974, p. 260).

O marco definitivo que alterou a igualdade natural entre os homens foi o desenvolvimento da noção de propriedade. A partir dela, a terra e os seus frutos passam a ter donos. Os pronomes possessivos “seu” e “meu” começaram a ser conjugados. A propriedade privada altera a alma e as paixões humanas, transformando definitivamente a igualdade inscrita na natureza humana. O homem natural desapareceu gradativamente, cedendo lugar a agrupamentos de homens artificiais e de paixões fictícias sem fundamentos na natureza. Na segunda parte do Discurso, Rousseau descreve a passagem do Estado de Natureza para o da Sociedade Civil:

O verdadeiro fundador da sociedade civil foi o primeiro que, tendo cercado um terreno, lembrou-se de dizer isto é meu e encontrou pessoas suficientemente simples para acreditá-lo. Quantos crimes, guerras, assassinatos, misérias e horrores não poupariam ao gênero humano aquele que, arrancando as estacas ou enchendo o fosso, tivesse gritado a seus semelhantes: ‘Defendei-vos de ouvir esse impostor; estareis perdidos se esquecerdes que os frutos são de todos e que a terra não pertence a ninguém!’ (Rousseau, 1974, p. 265).

No entanto, a idéia de propriedade não se formou repentinamente no espírito humano. Para que ela fosse construída e aceita entre os homens, outras tiveram que se sedimentar. O sentimento mais primitivo do homem foi o de sua existência. A auto-conservação foi sua primeira preocupação. Com o desenvolvimento da indústria e das luzes, bem como a sua transmissão por gerações e gerações, alteraram este sentimento e preocupação.

Com a agricultura os homens se fixam na terra, permitindo assim uma maior continuidade em suas relações: “as ligações se estendem e os laços se apertam. Os homens habituaram-se a reunir-se” (ROUSSEAU, 1974, p. 269). A aproximação e a constância nas relações humanas permitiram a observação mútua e, consequentemente, as comparações. Os homens olham os seus semelhantes e desejam ser olhados por eles. O primeiro passo dado rumo à desigualdade e ao vício ocorreu com o desenvolvimento das preferências, quando determinados atributos individuais passaram a ser valorizados.

Ao atribuir maior valor a aquele que dançava ou cantava melhor, ao mais belo ou mais forte, os homens iniciaram um caminho sem volta, nascendo assim, de um lado, a vaidade e o desprezo, e de outro, a vergonha e a inveja. Na carta enviada ao arcebispo Christophe de Beaumont, Rousseau afirma: “eis, monsenhor, o terceiro e último termo, para além do qual nada resta a fazer, e eis como o homem, sendo bom, os indivíduos tornam-se malvados” (ROUSSEAU apud FORTES, 1989, p. 14). E continuava:

(...) enquanto só se dedicaram a obras que um único homem podia criar, e a artes que não solicitavam concursos de várias mãos, viveram tão livres, sábios, bons e felizes quanto o poderiam ser por sua natureza, e continuaram a gozar entre si das doçuras de um comércio independente; mas, desde o instante em que um homem sentiu necessidade do socorro de outro, desde que percebeu ser útil a um só contar com a provisões para dois, desapareceu a igualdade, introduziu-se a propriedade, o trabalho tornou-se necessário e as vastas florestas transformaram-se em campos aprazíveis que se impôs regar com o suor dos homens e nos quais logo se viu a escravidão e a miséria germinarem e crescerem com as colheitas (ROUSSEAU, 1974, p. 271).

O homem selvagem, antes do estabelecimento da Sociedade Civil, vivia o repouso e a liberdade. Para se sentir feliz o seu testemunho era mais que suficiente. As palavras ‘poderio’ e ‘reputação’ não lhe faziam o menor sentido. Com o desenvolvimento da Sociedade Civil, baseada na estima pública e na propriedade, os homens passaram a viver para as aparências. Sua felicidade agora depende do testemunho de outrem. Assim:

(...) as palavras poder e reputação tivessem um sentido para seu espírito e que soubesse existir uma espécie de homens que dão valor aos olhos do resto do mundo e se sentem satisfeitos consigo mesmos mais pelo testemunho de outrem do que pelo seu próprio. Tal, com efeito, a verdadeira causa de todas essas diferenças: o selvagem vive em si mesmo; o homem sociável, sempre fora de si, só sabe viver baseando-se na opinião dos demais e chega ao sentimento de sua própria existência quase que somente pelo julgamento destes (ROUSSEAU, 1974, p. 287).

O homem nasce livre. A liberdade e a vida são bens essenciais da natureza. Para Rousseau, eram esses os maiores valores que o homem possuía. Mas, com o advento da Sociedade Civil e da propriedade, a liberdade usufruída pelo homem desapareceu. “O homem nasceu livre e em todo lugar encontra-se a ferros”. Estas são as palavras que marcam o início do Contrato Social. Os ferros que aprisionam os homens só se perpetuavam na Sociedade Civil porque a manutenção da propriedade exigia que isso ocorresse. A invenção da propriedade separava os ricos dos pobres. Para que os ricos mantivessem seus bens, a escravidão e as leis foram criadas. Surgem assim as primeiras sociedades civis baseadas em leis. Sobre elas, Rousseau concluía:

Tal foi ou deveu ser a origem da sociedade e das leis, que deram novos entraves ao fraco e novas forças ao rico (...), destruíram irremediavelmente a liberdade natural, fixaram para sempre a lei da propriedade e da desigualdade, fizeram de uma usurpação sagaz um direito irrevogável e, para lucro de alguns ambiciosos, daí por diante sujeitaram todo o gênero humano ao trabalho, à servidão e a miséria (ROUSSEAU, 1974, p. 275-276).

O direito à propriedade é apenas uma convenção das instituições humanas. O homem por seu próprio arbítrio podia dispor daquilo que possuía. No entanto, isso não pode ser feito com os bens essenciais da natureza, tais como a vida e a liberdade. A liberdade é um dom que advém da natureza. Na compreensão de Rousseau, o homem não tinha qualquer direito de usurpar a liberdade de outro semelhante. Se desta forma proceder, o homem viola a própria natureza ao instituir e legitimar a escravidão por intermédio de suas leis. Na sua visão, a natureza teve que ser modificada “para perpetuar esse direito e os jurisconsultos que pronunciaram gravemente nascer escravo o filho de um escravo resolveram, em outras palavras, que um homem não nasceria homem” (ROUSSEAU, 1974, p. 280 e 281).

As teorias que buscavam justificar as desigualdades e a escravidão, numa suposta tendência natural do homem à servidão, não passavam, para Rousseau, de sofismas de certos políticos e filósofos. Ele também refutava a idéia de que o poder absoluto dos governos déspotas, bem como de toda a sociedade, fosse uma herança de uma autoridade paterna natural. Ao se opor a tal idéia, Rousseau buscava apoio nas teorias de Locke e Sidney e argumentava que:

(...) basta observar que nada no mundo mais se distancia do espírito feroz do despotismo do que a doçura dessa autoridade, que leva em consideração antes o benefício daquele que obedece do que a utilidade daquele que comanda. Além disso, o pai, pela lei da natureza, só é senhor do filho enquanto necessário seu auxílio, tornando-se depois disso iguais e, então, o filho, inteiramente independente do pai, só lhe deve respeito, sem nenhuma obediência, pois o reconhecimento representa um dever que se deve cumprir, mas não um direito que se possa exigir. Em lugar de dizer que a sociedade civil deriva do poder paterno, dever-se-ia, pelo contrário, dizer que dela tira esse poder a sua principal força (ROUSSEAU, 1974, p. 279).

A natureza não gera seres servis. Rousseau, ao comparar o corcel indomável – que impetuosamente reage e luta por sua liberdade com aproximação do freio – com cavalo domado – que suporta pacientemente o chicote e a espora – demonstra que a servidão não se sustentava em uma tendência natural. Para ele, o espírito de servidão nascia com a sociedade; era ela que domesticava os seres, sejam homens ou animais. E continua a sua argumentação dizendo:

(...) também o homem bárbaro não dobra sua cabeça ao jugo que o homem civilizado carrega sem murmurar e prefere a mais tempestuosa liberdade a uma tranqüila dominação. Não é pois, pelo aviltamento dos povos dominados que se devem julgar das disposições naturais do homem a favor ou contra a servidão, mas sim pelo prodígio realizado por todos os povos livres para se defenderem da opressão. Sei que os primeiros nada fazem senão enaltecer continuamente a paz e o sossego de que gozam sob seus grilhões (...), mas quando vejo os outros sacrificarem os prazeres e o repouso, a riqueza, o poder e a própria vida pela conservação desse único bem tão desprezado por aqueles que o perderam, quando vejo animais, nascidos livres e detestando o cativeiro, esmagarem a cabeça contra as grades da prisão, quando vejo multidões de selvagens nus desprezarem as volúpias européias e enfrentarem a fome, o fogo, o ferro e a morte para conservar somente sua independência, concluo não poderem ser os escravos os mais indicados para raciocinar sobre a liberdade (ROUSSEAU 1974, p. 279).

Para Rousseau, os cidadãos só aceitavam a opressão porque acreditavam que um dia se beneficiariam com os privilégios da dominação. Essa ambição permitia que olhassem mais abaixo do que acima de si mesmos. A dominação passava a ser tolerada, pois os cidadãos alimentavam a crença de que um dia poderia aplicá-la nos seus supostos inferiores. Como a obediência serve mais àquele que busca um dia comandar, nenhum político por mais sagaz que seja, escravizaria homens que só desejassem ser livres. Mas ao contrário, “a desigualdade se expande, sem dificuldades, entre almas ambiciosas e covardes, sempre prontas a correr o risco da fortuna e a quase indiferentemente dominar ou servir, conforme lhes seja a fortuna favorável ou contrária” (ROUSSEAU, 1974, p. 283).

Um projeto de homem é logo identificado ao construir uma síntese das principais teses desenvolvidas por Rousseau em seu Discurso. Ao criar hipoteticamente o Estado de Natureza do homem, Rousseau evidencia o que a Sociedade Civil havia corrompido no homem. O pensamento de Rousseau, simbolicamente, faz o que um bom restaurador faria com a estátua danificada de Glauco. Ou seja, retirava os musgos e crostas que o encobriam e restaurava sua verdadeira integridade.

Rousseau não se resigna com a aparência imediata do homem civil. A Sociedade Civil fez com o homem o que o tempo e as forças corrosivas do mar profundo fizeram com Glauco. Assim, o homem também não poderia ser definido apenas pelo que restou de sua real integridade. O homem civil é mero espectro. As máscaras precisavam ser retiradas, para que o homem natural se revelasse com maior nitidez. Para Rousseau, o destino do homem está onde a liberdade e felicidade se fecundam.

DESENVOLVIMENTO

S

2.1 Concepção de Educação

Todos os progressos e prodígios humanos, que necessariamente não foram sempre positivos, advêm de um atributo denominado por Rousseau de perfectibilidade. Esse consistia na capacidade do homem de aperfeiçoar-se. Aqui reside a diferença entre o homem e o animal: o primeiro poderá modificar-se ao longo de toda a sua vida; o segundo, pelo “contrário, ao fim de alguns meses, é o que será por toda a vida, e sua espécie, no fim de milhares de anos, o que era no primeiro ano desses milhares” (ROUSSEAU, 1974, p. 249).

Na visão de Rousseau, os animais, como os homens, possuíam ideais que em determinadas circunstâncias podiam ser combinadas. Porém, no homem ao contrário dos animais, as idéias possuíam uma intencionalidade. Sobre esta intencionalidade, ele dizia:

A natureza manda em todos os animais, e a besta obedece. O homem sofre a mesma influência, mas considera-se livre para concordar ou resistir, e é sobre tudo na consciência dessa liberdade que se mostra a espiritualidade de sua alma, pois a física de certo modo explica o mecanismo dos sentidos e a formação das idéias, mas no poder de querer, ou antes, de escolher e no sentido desse poder só se encontram atos puramente espirituais que de modo algum serão explicados pelas leis mecânicas (ROUSSEAU, 1974, p. 249).

A liberdade, que permitia ao homem desenvolver a capacidade de aperfeiçoar-se, era entendida, nesse texto, como a pedra fundamental da proposta de educação desenvolvida por Rousseau. Para ele, o primeiro de todos os bens não era autoridade, mas sim a liberdade. A finalidade última da educação de Rousseau é possibilitar que o homem fosse verdadeiramente livre, fosse um ser forte e autônomo. A força do homem livre estava no governar de suas paixões. Cabia, então, ao processo educativo permitir ao homem compatibilizar as suas necessidades, desejos e paixões às suas forças. O homem que “só quer o que pode e faz o que agrada. Eis a minha máxima fundamental. Trata-se apenas de aplicá-la à infância, e todas as regras da educação decorrerão dela” (ROUSSEAU, 2004, p. 80-81).

Nesse sentido, o preceptor não deve dar preceitos ao aluno, mas sim fazer com que ele os encontre. Rousseau rejeitava todos os preceitos oferecidos pela educação da Sociedade Civil, pois avaliava que toda a sabedoria dessa sociedade consistia em preconceitos servis e que todos os “costumes não passam de sujeição, embaraço e constrangimento. O homem civil nasce, vive e morre na escravidão; enquanto conservar a figura humana, estará acorrentado por nossas instituições (Rousseau 2004, p. 16)”. A sua proposta de educação é uma negação das convenções estabelecidas pela Sociedade Civil:

Portanto, a primeira educação deve ser puramente negativa. Consiste não em ensinar a virtude ou a verdade, mas proteger o coração contra o vício e o espírito contra o erro. Se pudesses nada fazer e nada deixar que fizessem, se pudesses levar nosso aluno são e robusto até a idade de doze anos em que ele soubesse distinguir a mão esquerda da direita, desde vossas primeiras lições os olhos de seu entendimento se abririam para a razão; sem preconceitos, sem hábitos, ele nada teria em si que pudesse obstar o efeito de vossos trabalhos. Logo se tornariam em vossas mãos o mais sábio dos homens e, começando por nada fazer, tereis feito um prodígio de educação (ROUSSEAU, 2004. p. 97).

Rousseau não almejava moldar a cabeça das crianças, dando lhes uma forma mais conveniente para atender as expectativas da Sociedade Civil. Ao contrário, ele fez uma severa crítica aos que pretendiam realizar, a qualquer custo, essas expectativas. A sua crítica vinha na forma de uma interrogação: “nossas cabeças não estariam bem à maneira do autor de nosso ser; precisamos tê-las moldadas por fora pelas parteiras e por dentro pelos filósofos?” (ROUSSEAU, 2004, p. 17) O homem não deveria ser educado para atender à opinião pública, desta maneira:

(...) em vez de educar um homem para si mesmo, queremos educá-lo para os outros? Este acordo torna-se, então, impossível. Forçado a combater a natureza ou as instituições sociais, é preciso optar entre um homem ou um cidadão, pois não se podem fazer os dois ao mesmo tempo (ROUSSEAU, 2004, p. 11).

O homem, livre e autônomo, idealizado por Rousseau deveria, no entanto, servir ao imperativo da natureza. Ao estabelecer a soberania das necessidades naturais sobre as convenções sociais, Rousseau buscava restaurar a igualdade original da natureza humana. Desta forma, cada indivíduo, independente da sua posição social, era reconhecido como um sujeito de potencialidades. Nesse sentido, ele afirma:

Conhecemos, pois, ou podemos conhecer o primeiro ponto de onde cada um de nós parte para chegar ao grau comum de entendimento; mas quem conhece a outra extremidade? Cada qual avança mais ou menos segundo seu gênio, seu gosto, suas necessidades, seus talentos, seu zelo e as oportunidades que tem para se entregar a ele. Que eu saiba, nenhum filósofo até agora foi suficientemente ousado para dizer: eis o termo aonde o homem pode chegar e que não seria capaz de ultrapassar. Ignoramos o que nossa natureza nos permite ser; nenhum de nós mediu as distâncias que pode haver entre um homem e outro homem (ROUSSEAU, 2004, p. 48).

O reconhecimento das potencialidades humanas norteia a obra de Rousseau. A compreensão de que homem apresenta diferentes estágios de desenvolvimento ao longo de sua vida é outra importante característica. Em cada um dos estágios evolutivos do homem existe uma forma diferente de apreender o mundo. Os sentidos e percepções físicas, as paixões do espírito e a razão são adquiridas de acordo com uma ordem hierárquica. Ao descrever esta hierarquia, Rousseau expressa a influência que sofreu das teses de Hume. Ele postulava que:

Como tudo o que entra no entendimento humano vem pelos sentidos, a primeira razão do homem é uma razão sensitiva; é ela que serve de base para a razão intelectual: nossos primeiros mestres de filosofia são nossos pés, nossas mãos, nossos olhos. Substituir tudo isso por livros não equivale a nos ensinar a racionar, mas sim a nos ensinar a nos servirmos da razão de outrem; equivale a nos ensinar a acreditar muito e nunca nada saber (ROUSSEAU, 2004, p.148).

Na concepção de educação, idealizada por Rousseau, o preceptor deveria ter sempre a mesma postura de um bom governante. Não deveria ser tirânico, não daria ordens arbitrárias. Apesar de se contrapor aos métodos autoritários de educação, Rousseau, no entanto, não aderia à educação liberal defendida por Locke. A grande máxima dessa educação era de que as crianças deveriam ser educadas por intermédio de explicações racionais. Rousseau discordava, pois entendia ser um grave equívoco raciocinar com crianças pequenas. Utilizar a razão nesse caso “é começar pelo fim, é querer fazer da obra o instrumento. Se as crianças compreendessem razão, não teriam necessidade de ser educadas” (ROUSSEAU apud GROSRICHARD, 1980, p. 33).

De acordo com Rousseau, a razão é uma faculdade que só se desenvolve a partir de outras. O desenvolvimento da faculdade da razão é complexo e tardio. As sensações físicas e as paixões do espírito são faculdades que precedem à razão. Perceber e sentir são estados que o homem tem em comum com os animais. Querer e não querer, desejar e temer são as primeiras operações da alma humana. O entendimento humano devia em muito às paixões, pois era por elas que a razão se aperfeiçoa. Ele dizia: “só procuramos conhecer porque desejamos usufruir e é impossível conceber por que aquele, que não tem desejos ou temores, dar-se-ia a pena raciocinar” (ROUSSEAU, 1974, p. 250).

Na concepção de educação de Rousseau, o preceptor de crianças pequenas não deveria empregar a força nem o raciocínio. Assim, o preceptor ao exercer a autoridade deveria conduzir sem violência e persuadir sem convencer. A principal tarefa do preceptor, nos primeiros anos de vida da criança, era possibilitar que elas desenvolvessem a curiosidade e a experimentação sensorial. Sobre isto ele dizia:

As primeiras faculdades que se formam e se aperfeiçoam em nós são os sentidos. São, portanto, as primeiras faculdades que seria preciso cultivar; são as únicas que são esquecidas, ou as mais desdenhadas (...). Portanto, não exerciteis apenas as forças, exercitai todos os sentidos que as dirigem; tirai de cada um deles todo o partido possível, e depois verificai a impressão de um pelo outro. Medi, contai, pesai, comparai. Não uses de força senão depois de ter calculado a resistência; agi sempre de tal sorte que o cálculo do efeito preceda o emprego dos meios. Fazei com que a criança tenha interesse em nunca fazer esforços insuficientes ou supérfluos (ROUSSEAU, 2004, p. 160).

Para cultivar a inteligência era preciso antes cultivar as forças que o aluno deveria governar. O exercício do corpo deveria ser contínuo, para que este ficasse robusto e sadio. Trabalhar, agir, correr e gritar são fontes de vigor para o homem. Com o vigor viria também a razão. O exercício do corpo, de forma alguma, prejudica as operações do espírito. As forças do corpo e da razão devem ser combinadas para que uma não sobreponha a outra. Na educação proposta por Rousseau, o fundamental era possibilitar às crianças mais liberdade e menos domínio. As crianças deviam fazer mais por si e exigir menos dos outros, “acostumando-se cedo a limitar os seus desejos às suas forças, pouco sentirão a privação do que não tiver em seu poder” (ROUSSEAU, 2004, p. 58). Desta forma, a liberdade vivenciada pela criança pouco a pouco se transformaria em auto-suficiência.

A experimentação sensorial, o fortalecimento da vontade e a proteção contra os vícios dos costumes civis eram as prioridades na educação da primeira infância. “Esse é o meio de um dia obter o que acreditamos ser incompatível e o que quase todos os grandes homens reuniram a força do corpo e a força da alma, a razão de um sábio e o vigor de um atleta. (...) Jamais conseguireis criar homens sensatos se antes não criardes moleques” (ROUSSEAU, 2004, p. 139).

2.2 Concepção de Infância
Existe uma coerência intrínseca entre a concepção de homem, proposta no “Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens”, e a de infância, desenvolvida por Rousseau na obra Emílio ou Da Educação. As idéias da bondade e da liberdade original inscrita no homem natural deram base ao seu entendimento sobre a infância. Por tal, novamente Rousseau se opôs a Hobbes ao propor suas teses educativas, dizendo: “respeitai a infância e não vos apresseis em julgá-la, quer para bem, quer para o mal” (ROUSSEAU, 2004, p. 119). Na sua visão, Hobbes dizia algo absolutamente contraditório ao chamar o mau de criança robusta. A criança não deveria receber um julgamento a priori. Para refutar os argumentos de Hobbes, ele dizia:

Toda maldade vem da fraqueza; a criança só é má porque é fraca. Tornai-a forte e ela se tornará boa. Aquele que tudo pudesse jamais faria o mal. De todos os atributos da divindade todo-poderosa, a bondade é aquele sem o qual menos podemos concebê-la. Todos os povos que reconhecem dois princípios sempre consideram o mau como inferior ao bom, sem o que teriam feito uma suposição absurda. (...) Só a razão nos ensina a conhecer o bem e o mal. A consciência que nos faz amar a um e a odiar ao outro, embora independente da razão, não pode, pois, desenvolver-se sem ela. Antes da idade da razão, fazemos o bem e o mal sem sabê-lo, e não há moralidade em nossas ações, embora às vezes ela exista no sentimento das ações de outrem que se relacionam conosco (ROUSSEAU, 2004, p. 56).

Reaparece, na sua visão de infância, o conceito de amoralismo integral. A bondade e maldade são valores que a criança pequena não consegue apreender. Os atos infantis não são guiados pela razão. Assim, quando uma criança destrói coisas, derruba objetos, fere ou provoca dor em animais ou a pessoas, ela não o faz por entender ser esses atos bons ou maus. De acordo com Rousseau, os filósofos Hobbes e Locke se equivocavam ao tentar explicar tais atos pelos vícios naturais, como orgulho, espírito de dominação, amor próprio e maldade do homem.

Rousseau compreendia que tais atos tinham origem nas necessidades implícitas à fase de desenvolvimento que a criança vivia e não na maldade original da natureza humana. Sua explicação se sustentava na noção de desenvolvimento infantil. A criança pequena, por sua característica fraqueza física, possuiu a necessidade de realizar atos de força. A criança se movimenta bruscamente. Tudo é intenso e dinâmico, pois ela precisa experimentar novas sensações e provar para si mesma seu próprio poder. Na pessoa idosa ocorre o contrário, as ações desejadas são as que trazem tranquilidade, a menor mudança perturba e inquieta. Assim:

A atividade enfraquecida concentra-se no coração do velho; no da criança, ela é superabundante e se lança para fora; a criança sente-se, por assim dizer, com vida suficiente para animar tudo o que a cerca. Pouco importa que faça e desfaça; basta que mude o estado das coisas, e toda mudança é ação. Pois, se parece ter uma tendência maior para destruir, não é por maldade, mas porque a ação que forma é sempre lenta, e a que destrói, sendo mais rápida, convém mais à sua vivacidade (ROUSSEAU, 2004, p. 57).

Se os atos destrutivos da criança tivessem origem nos vícios naturais, por que no velho, que é herdeiro da mesma natureza primitiva, eles não se mantêm? Essa pergunta, Rousseau respondeu com outra interrogativa: “onde encontraremos essa diversidade de causa a não ser na condição física dos indivíduos?” E continuava seu raciocínio dizendo: “o princípio ativo, comum a ambos, desenvolve-se num e extingue-se no outro; um se forma e o outro se destrói; um tende a vida, o outro a morte” (ROUSSEAU, 2004, p. 57).

A diferenciação estabelecida entre as necessidades e os comportamentos das crianças e dos velhos, demonstrava como Rousseau concebia o desenvolvimento humano. Para ele, o homem não era um ser pronto e acabado. Em cada idade o homem se expressa, adquiri habilidades e apreende o mundo de forma diferente. A fim de sustentar esta tese, Rousseau, em um esforço extraordinário de argumentação, descreveu minuciosamente as fases de desenvolvimento por qual passava a criança. Esse esforço explicativo compareceu na sua descrição do processo de desenvolvimento dos sentidos (tato, visão, audição, paladar e olfato), da aquisição da linguagem e da evolução do raciocínio.

Nas teses apresentadas na obra Emílio, Rousseau inaugura, no pensamento de sua época, a noção de desenvolvimento infantil. Do ponto de vista da autoria desde texto, essa noção foi uma das maiores contribuições de Rousseau. Em sua concepção de infância, não cabia mais a visão de que a criança é um adulto em miniatura. A criança é um ser em fase especial de desenvolvimento. Portanto, os parâmetros a serem usados na compreensão da criança não poderiam ser os mesmo do homem adulto. O discernimento da criança e do adulto possui origens e funcionamentos distintos.

Se em cada fase a criança assumia um entendimento e uma expressão diferente, cabia, então ao preceptor, conduzir o processo educativo de acordo com as necessidades e possibilidades de cada uma dessas fases. Ao longo dos capítulos do livro Emílio ou Da Educação, Rousseau deixava nítidas recomendações aos futuros preceptores para cada etapa de vida da criança. As recomendações feitas sobre temas como: a necessidade de experimentação sensorial, o desenvolvimento do raciocínio, a noção de tempo, e os hábitos e costumes civis serão exemplificadas a seguir. Sobre a aprendizagem sensorial ele sugeria:

A criança quer tocar em tudo, pegar em tudo: não vos oponha a esta inquietação; ela lhe sugere um aprendizado muito necessário. É assim que ela aprende a sentir o calor, o frio, a dureza, a moleza, o peso, a leveza dos corpos, a julgar sua grandeza, sua figura e todas as qualidades sensíveis, olhando, apalpando, escutando e principalmente comparando a visão com o tato, estimulando com os olhos a sensação que produziriam em seus dedos (ROUSSEAU, 2004, p. 51-52).

Nos primeiros anos de vida todo o saber da criança provém das sensações, nada passou ainda pelo entendimento. Rousseau esclarecia, no entanto, a qual entendimento estava se referindo. A criança não estava isenta de nenhuma espécie de raciocínio. Mas, sim, seu raciocínio era de natureza imediata e estava ligado a eventos concretos. Ele entende que as crianças “raciocinam muito bem em tudo o que conhecem e que relacione com o seu interesse presente e sensível” (ROUSSEAU, 2004, p. 121).

Como a criança pequena só atinge o nível de raciocínio sensível e imediato, cabia ao preceptor uma atenção especial na forma como se comunicava com ela. Nos primeiros anos de vida da criança, a educação não deveria privilegiar as palavras, mas sim os atos. Assim, outro alerta foi dirigido aos jovens mestres: “peço-vos que penseis nesse exemplo e vos lembreis de que em todas as coisas vossas lições devem consistir mais em atos do que em palavras, pois as crianças facilmente se esquecem do que disseram e do que lhes dissemos, mas não do que fizeram e do que fizemos” (ROUSSEAU, 2004, p. 107).

Sobre a importância do tempo na educação das crianças, Rousseau dizia: os “defeitos de corpo e de espírito vêm quase todos da mesma causa: queremos ver as crianças homens antes do tempo” (ROUSSEAU, 2004, p. 150). Para evitar esses “defeitos”, ele deixou um aviso aos preceptores: “a instrução das crianças é uma profissão em que é preciso saber perder tempo para poder ganhá-lo” (ROUSSEAU, 2004, p. 175, 2004). Ao educar as crianças, o preceptor precisava ter ciência de que em cada fase de vida certa aprendizagem era adquirida. Antecipar determinadas aprendizagens, em função de uma demanda social, era para Rousseau um grande equívoco. Este posicionamento pode ser evidenciado quando ele falava sobre o sono da razão:

Deixai as exceções se revelarem, se provarem, se confirmarem muito tempo antes de adotar para elas métodos particulares. Deixai a natureza agir bastante tempo antes de resolver agir em seu lugar, temendo contrariar suas operações. Dizei que conheceis o valor do tempo e não quereis perdê-lo. Não vedes que perdeis muito mais empregando-o mal do que fazendo nada, e que uma criança mal instruída está mais distante da sabedoria do que aquela que não foi absolutamente instruída.(...) Que diríeis de um homem que, para aproveitar toda a vida, não quisesse dormir nunca? Diríeis: este homem é louco; não desfruta o tempo, mas perde-o; para fugir do sono, corre para a morte. Considerai, pois que nesse caso ocorre a mesma coisa, e a infância é o sono da razão (ROUSSEAU, 2004, p. 119).

Por fim, Rousseau solicitava que os preceptores não cultivassem o estabelecimento de hábitos na educação das crianças. Sua meta ao fazer tal recomendação, era não permitir que as crianças se acomodassem fisicamente a rotina dos cuidados diários. Ele dizia:

O único hábito que devemos deixar que a criança adquira é o de não contrair nenhum. Que não a carreguem mais sobre um braço do que sobre o outro, que não a acostumem a mostrar mais uma mão do que a outra, a se servir dela com maior freqüência, a querer comer, dormir e agir às mesmas horas, a não poder ficar sozinha nem de dia nem de noite. Preparai à distância o reinado de sua liberdade e o uso de suas forças, deixando em seu corpo o hábito natural, colocando-a em condições de sempre ser senhora de si mesmo (ROUSSEAU, 2004, p. 49).

A rotina e o costume, ou seja, os hábitos encobriam as reais necessidades naturais da criança. Os hábitos, particularmente os da Sociedade Civil, geravam acomodação e subserviência nas crianças. Ao negar a formação de hábitos, os preceptores estavam preparando a criança para governo de sua liberdade e o uso de suas forças. Para que o corpo da criança se fortaleza era preciso deixá-lo ser conduzido apenas pelo hábito natural. Comparece aqui, novamente a tese defendida por Rousseau de que o homem só está sujeito à soberania da natureza e não dos costumes e convenções civis.

2.3 Uma proposta de educação não violenta para a infância
Para Rousseau, a vida da criança não valia menos do que a vida de um adulto. A fase inicial, os primeiros anos de vida da criança, não deveria ser desprezada em função dos projetos e expectativas da vida adulta. Como o tempo de vida de cada indivíduo era sempre incerto, cada instante deveria ser muito valorizado. A mortalidade infantil era devastadora na época em que viveu Rousseau. Das crianças que nasciam vivas, no máximo, a metade chegava à adolescência. Os maiores riscos estavam no começo da vida. Assim, quanto menos se vivesse menos deveriam esperar viver. Ciente disso, fez severas críticas à educação oferecida aos alunos de seu tempo:

Que devemos pensar, então, dessa educação bárbara que sacrifica o presente por um futuro incerto, que prende uma criança a correntes de todo o tipo e começa por torná-la miserável, para lhe proporcionar mais tarde não sei que pretensa felicidade de que provavelmente não gozará jamais? Mesmo que eu considere razoável essa educação por seu fim, como encarar sem indignação essas pobres infelizes submetidas a um jugo insuportável e condenadas a trabalhos contínuos como os galeotes, sem ter certeza de que tantos trabalhos algum dia lhes serão úteis! A idade da alegria passa-se e meio a prantos, a castigos, a ameaças, à escravidão. Atormenta-se a infeliz para seu próprio bem, e não se vê a morte que a chama e vai apanhá-la no meio dessa triste condição. Quem sabe quantas crianças morrem vítimas da extravagante sabedoria de um pai ou de um professor? Felizes por escaparem à sua crueldade, a única vantagem que tiram dos males que lhes fizeram sofrer é morrer sem ter saudades da vida, de só conheceram os tormentos (ROUSSEAU, 2004, p. 72).

Ao tecer essa contundente crítica à educação que promovia o mal em nome de um bem futuro, Rousseau fez uma das mais belas defesa da infância. E convocava os homens a cumprirem o seu primeiro dever: serem verdadeiramente humanos. E continuava o seu apelo dizendo:

(...) sede humanos para todas as condições, para todas as idades, para tudo o que não é alheio ao homem. Por vós, que sabedoria há fora da humanidade? Amai a infância; favorecei suas brincadeiras, seus prazeres, seu amável instinto. Quem de vós não teve saudade dessa época em que o riso está sempre nos lábios, e a alma está sempre em paz? Por que quereis retirar desses pequenos inocentes o gozo de um tempo tão curto que lhes foge, e de um bem tão precioso, de que não poderiam abusar? Por que quereis encher de amargura e de dores esses primeiros anos tão velozes, que não mais voltarão para eles, assim como não voltarão para vós? Não fabriqueis remorsos para vós mesmos retirando os poucos instantes que a natureza lhes dá. Assim que eles puderem sentir o prazer de existir, fazei com que o gozem; fazei com que, a qualquer hora que Deus chamar, não morram sem ter saboreado vida (ROUSSEAU, 2004, p. 72-73).

A sua crítica a essa educação bárbara prosseguiu e em nenhum momento ele se intimidou ao que Rousseau chamou de falsa sabedoria. A falsa sabedoria buscava tirar os homens para fora de si, considerando sempre que o presente não é nada. Se só o futuro interessava, então o homem nunca viveria o momento atual, pois estaria se preparando sempre para o próximo. O homem, assim, seria levado a estar onde nunca poderia estar verdadeiramente. Com essa argumentação, Rousseau em pleno século XVIII, iniciava a desconstrução da idéia de que a criança é um ser do amanhã, um cidadão do futuro.

A educação não tinha, para Rousseau, como objetivo corrigir as más inclinações do homem. O dito popular “É de pequeno que se torce o pepino”, tão em voga nos tempos atuais, jamais teria valor na sua educação proposta. Ele contestava a idéia de que:

(...) é na infância, quando as dores são menos sensíveis, que devemos multiplicá-las, para poupá-las na idade da razão. Mas quem vos diz que todo esse arranjo está à vossa disposição e todas essas belas instruções com que torturais o débil espírito de uma criança não lhe serão um dia mais nocivas do que úteis? Quem vos garante que poupais alguma coisa com os sofrimentos que lhes prodigais? Por que lhe dais mais males do que sua condição comporta, sem terdes certeza de que esses males presentes diminuirão os futuros? E como me provareis que essas más inclinações de que pretendeis curá-las não provêm de vossos cuidados mal compreendidos, muito mais do que da natureza? Infeliz previdência, que torna um ser atualmente miserável, na esperança bem ou mal fundada de torná-lo feliz um dia! Pois se esses vulgares raciocinadores confundem a licença com liberdade, e a criança que tornamos feliz com a criança mimada, ensinemo-los a distingui-las (ROUSSEAU, 2004, p. 73).

Para Rousseau, a humanidade tem seu lugar na ordem das coisas. E a infância tem o seu na ordem da vida humana. Assim, “é preciso considerar o homem no homem e a criança na criança (ROUSSEAU, 2004, p. 74)”. Para atingir o bem-estar dos indivíduos era necessário que a criança e o homem estivessem no seu devido lugar, devendo-se assim fixar e ordenar as paixões humanas conforme a constituição de cada um.

Ainda conforme Rousseau, a criança não era um ser desprezível. Ele dedica muito de seu esforço intelectual a entendê-la. A primeira educação é considerada a mais importante. Por diversas vezes, ele expressava em seus escritos espanto e indignação ao presenciar adultos utilizando-se de métodos violentos na educação das crianças. Em uma passagem exemplar ele questionava a justiça de tais métodos:

Jamais esquecerei ter visto um desses incômodos chorões apanhar da ama-de-leite. Calou-se de imediato; achei que ficara com medo. Dizia para mim mesmo: será uma alma servil de quem só se conseguirão as coisas através do rigor. Estava enganado: o infeliz sufocado de cólera, tinha perdido a respiração, vi-o tornar-se roxo. Logo em seguida vieram os gritos agudos. Todos os sinais do ressentimento, do furor, do desespero dessa idade estavam no tom em que chorava. Temi que morresse naquela agitação. Se eu tivesse dúvida de que o sentimento do justo e do injusto é inato no coração do homem, só esse exemplo já me teria convencido. Tenho certeza de que, se um tição ardente tivesse caído por acaso na mão daquela criança, teria sido para ela menos doloroso do que aquele golpe leve, mas desferido com a intenção manifesta de atingi-la (ROUSSEAU, 2004, p. 54).

A educação proposta por Rousseau buscava, por todos os meios, destruir o que a sociedade civil construiu. O princípio fundamental dessa educação era romper com o modelo de relação estabelecida entre os homens, que tinha como base a dominação e, por conseguinte, a servidão. No entendimento de Rousseau. “o capricho das crianças nunca é obra da natureza, mas sim de uma má disciplina, que faz com que obedeçam ou mandem, já disse cem vezes que não devem fazer nem uma coisa nem outra” (ROUSSEAU, 2004, p. 142).

Rousseau discordava tanto dos adultos que impunham às crianças suas vontades à força, como dos que faziam todas as vontades da criança, mimando-a em demasia. Em sua opinião, as duas atitudes resultavam em prejuízo, pois:

Ao nascer, uma criança grita; sua primeira infância passa chorando. Ora a sacodem e a mimam para acalmá-la, ora a ameaçam e lhe batem para que fique quieta. Ou lhe fazemos o que lhe agrada, ou exigimos dela o que nos agrada; ou nos submetemos às suas fantasias, ou a submetemos às nossas: não há meio termo, ela deve dar ordens ou recebê-las. Assim, suas primeiras idéias são as de domínio e de servidão. Antes de saber falar ela dá ordens, antes de poder agir ela obedece e, às vezes, castigam-na antes que possa conhecer seus erros, ou melhor, cometê-los. É assim que cedo vertemos em seu jovem coração as paixões que depois imputamos à natureza, e após nos termos esforçado para torná-la má, queixamo-nos de vê-la assim (ROUSSEAU, 2004, p. 26).

Os educadores, no entendimento de Rousseau, jamais deveriam infligir às crianças o castigo como castigo. As punições deveriam chegar até as crianças como uma conseqüência natural de sua má ação. A sua rejeição ao castigo, como método educacional, foi explicitada no momento em que ele refletia sobre as mentiras das crianças. Rousseau recomendava aos preceptores que ao identificar uma mentira não fizessem declarações contra a ela, nem tão pouco punisse a criança por ter mentido. O importante é que a criança sentisse todos os efeitos da mentira, como por exemplo: “não se acreditar nelas quando dizem a verdade, o de serem acusadas pelo mal que não fizeram, mesmo se defendendo, juntem-se sobre suas cabeças quando mentido. Mas expliquemos o que é mentir para as crianças” (ROUSSEAU, 2004, p. 109).

Na passagem dos vidros quebrados, descrita no livro II do Emílio, Rousseau novamente deixou claro o princípio de seu método educativo. Mesmo em uma situação extrema, ele não se desviou dos princípios de sua educação. Assim, enfrentou hipoteticamente a teimosia e a agressividade da criança, sem se valer de métodos coercitivos. E mais, transformou este episódio numa inusitada oportunidade de aprendizagem, como o texto abaixo demonstra:

Vosso filho díscolo estraga tudo o que pega. Não vos aborreçais. Ponde fora de seu alcance o que ele puder estragar. Ele quebra os móveis que usa; não vos apresseis em lhe dar outros, deixai que sinta o prejuízo da privação. Ele quebra as janelas de seu quarto; deixei que o vento sopre sobre ele noite e dia sem vos preocupardes com o resfriado, pois é melhor que ele esteja resfriado do que louco. Nunca vos queixeis dos incômodos que ele vos causa, mas fazei com que seja o primeiro a sentir. Por fim, mandai repor os vidros, sempre sem dizer nada. Quebra-os mais uma vez? Mudai, então, de método. Dizei-lhe secamente, mas sem cólera: as janelas são minhas, foram postas ali por minha ordem, e eu quero protegê-las. Depois vós o trancareis no escuro, num lugar sem janelas. Diante desse novo procedimento, ele começa a gritar, por trovejar, ninguém o escuta. Logo ele se cansa e muda de tom. Queixa-se e geme; um doméstico aparece, o rebelde pede-lhe que o solte. Sem procurar pretexto para nada fazer, o doméstico responde: Tenho também vidros para consertar, e vai embora. Finalmente, depois que a criança tiver ficado ali por várias horas, tempo bastante para se aborrecer e para não esquecer, alguém lhe sugerirá que vos proponha um acordo por meio do qual vós lhe restituiríeis a liberdade e ela não quebraria mais vidros.(...) E depois, sem lhe pedir nem declaração, nem conformação de sua promessa, vós a beijareis com alegria e a conduzireis imediatamente até seu quarto, encarando esse acordo como sagrado e inviolável, tanto quanto se tivesse sido jurado. Que idéia pensais que a criança terá a partir desse caso, sobre a fé dos compromissos e sobre a sua utilidade (ROUSSEAU, 2004, p. 108)?

Com relação a sua proposta educativa, Rousseau deixou ainda dois alertas para os preceptores. No primeiro alerta, ele recomendava que não se devesse encorajar a rebeldia de uma criança. Ela não devia ser incitada a bater, ainda que seja por brincadeira. Pois, de acordo com sua visão: “aquele que quer bater quando jovem vai querer matar quando grande” (ROUSSEAU, 2004, p. 103). Da mesma forma que a agressão não devia ser estimulada, o preceptor não deveria agir, nem tão pouco, atribuir um valor positivo às atitudes impetuosas e coléricas que vinham dos demais adultos. Sobre essas atitudes e a impressão que causa nas crianças, ele dizia:

As paixões impetuosas produzem um grande efeito na criança que a presencia, pois elas têm sinais muito sensíveis que impressionam e a força a prestar atenção. A cólera, principalmente, é tão ruidosa em seus arroubos que é impossível não percebê-la estando por perto. (...) A criança vê um rosto excitado, olhos brilhantes, um gesto ameaçador, ouve gritos; são todos sinais de que o corpo não vai bem. Dizei-lhe isso, tranquilamente, sem mistério: este pobre homem está doente, sofre um acesso de febre (ROUSSEAU, 2004, p. 101).

A moderação sempre deveria prevalecer na conduta do preceptor. Se por algum motivo o preceptor perdesse o sangue-frio, no processo de formação do aluno, ele não deveria disfarçar o erro. Pelo contrário, com total franqueza deveria expressar o que fez perder o controle naquele momento. Agindo assim, o preceptor simultaneamente negava as dissimulações e restabelecia e afirmava o seu autocontrole. O comportamento do preceptor deveria ser um constante exemplo. O objetivo fundamental da educação de Rousseau era conduzir a criança para que ela conquistasse a liberdade, ou seja, o autogoverno de si. Diante dessa proposta, ele deixou mais um importante alerta para os futuros preceptores: “(...) nunca é demais repetir que, para ser o mestre da criança, é preciso ser mestre de si mesmo” (ROUSSEAU, 2004, p. 102).

DISCUSSÃO

S

Um projeto educacional representa sempre uma determinada visão de mundo e de homem. Hobbes entendia o homem como um ser destrutivo por natureza. Na sua visão, cada homem era um inimigo nato dos demais, pois este só encontrava o seu bem fazendo o mal aos demais. Portanto, para que a vida em sociedade fosse uma realidade viável, era necessário que poderosos mecanismos de coerção fossem criados para inibir os efeitos dessa natureza humana. Deriva desta visão a idéia de Estado, pois só com uma estrutura organizativa forte, externo à vontade individual do homem, poderia existir uma sociedade civilizada.

Nesse sentido, para garantir a sociabilidade humana era necessário existir os mecanismos de coerção e controle social, tais como os ideológicos, as leis religiosas e civis, os repressivos, as prisões, as privações e demais formas de punições violentas. O pensamente de Thomas Hobbes é apenas um exemplo de como uma visão de mundo e de homem conduz a uma determinada concepção de educação. Para essas visões, que entendem o homem com um ser naturalmente destrutivo, por tanto incapaz de autogoverno, só caberia à educação, institucionalizada ou não, a tarefa de conter ou minimizar a força dos vícios naturais do homem.

Rousseau, ao contrário de Hobbes, apostava na bondade original do homem. A liberdade, a igualdade e o respeito às forças imponderáveis da natureza eram, para ele, os maiores valores do homem. No entanto, esses valores foram aos poucos corrompidos pela Sociedade Civil. A natureza humana não podia, então, ser julgada a partir do que se estabeleceu entre os homens nessa sociedade. Os germes que romperam com o real Estado de Natureza do homem foram, inicialmente, a estima e a consideração pública e, imediatamente após, as primeiras desigualdades e deveres civilizados.

A invenção da propriedade privada e a formação das leis civis viabilizaram o progresso da desigualdade. As leis foram criadas com o objetivo de assegurar a manutenção da propriedade. Ou seja, que ela se perpetuasse nas mãos de seus usurpadores. A partir do estabelecimento da propriedade e das leis que as mantêm, contendas e vinganças surgiram nas relações humanas. A piedade natural e o amor de si ficam subsumidos na moralidade civil. O policiamento dos costumes e a conseqüente punição dos contraventores foram importantes mecanismos mantenedores da ordem estabelecida entre os homens da Sociedade Civil. Rousseau acreditava que os mecanismos de controle e de dominação criados pela sociedade têm a mera função de manter as desigualdades entre os homens.

Como Rousseau era crítico da ordem social que mantinha as desigualdades e acreditava que a natureza do homem não é em si destrutiva, a sua proposta educacional tinha finalidades e métodos diametralmente opostos às propostas educacionais de Hobbes. Na obra Emílio ou Da Educação, Rousseau concebeu uma educação negativa, pois tinha como objetivo principal preservar ao máximo o aluno das convenções e leis da Sociedade Civil. Alegoricamente, a educação negativa de Rousseau podia ser comparada com o trabalho artesanal de um restaurador, pois o seu objetivo era preservar a integridade original de uma determinada peça de arte. Nada se acrescenta à obra, pois tudo já foi concluído pela natureza. Os artifícios criados pela Sociedade Civil só ofuscam e decompõem a estética e a integridade natural do homem.

A educação de Emílio tem como princípio fundamental o rompimento com o padrão relacional da Sociedade Civil, em que uns dominam e outros são subjugados. O aluno de Rousseau não aprenderia a dominar nem tão pouco obedecer. Por tal princípio, todos os métodos coercitivos de educar são rejeitados. Os mecanismos de controle externo eram antagônicos aos objetivos de Rousseau, pois o que se pretendia era que, desde pequena, a criança caminhasse no sentido de conquistar o seu autocontrole. A criança não seria submetida às vontades absolutas do adulto, ainda que esses fossem seus pais ou preceptores, nem tão pouco submeteria os adultos às suas vontades e fantasias.

No entendimento de Rousseau, só dois valores são inalienáveis ao homem: a vida e a liberdade. Pois, esses são dons que advém da natureza. O homem não tem qualquer direito de usurpar a liberdade de outro semelhante. Instituir e legitimar a escravidão por intermédio das leis do homem era, para Rousseau, violar a própria natureza. Assim, o valor máximo a ser cultivado na educação de Emílio era a liberdade. A auto-suficiência e autonomia eram capacidades que Emílio deveria adquirir. Sua educação deveria, então, fortalecê-lo física e espiritualmente para enfrentar os jugos dos homens que queriam oprimir, bem como para encarar os desafios impostos pela natureza. Nesse sentido, educar era, para Rousseau, reinventar a liberdade.

Grosrichard (1980) expressa uma convergência com a leitura da proposta educacional de Rousseau ao relembrar que para ele o único instrumento capaz de proporcionar uma verdadeira educação era a liberdade bem regrada. Em Emílio, Rousseau diz: “todos os instrumentos foram experimentados, menos um. O único, precisamente, que pode ter êxito: a liberdade bem regrada” (ROUSSEAU apud GROSRICHARD, 1980, p. 29). Ser bem regrada, na interpretação deste autor, é evitar qualquer forma de coação externa. A liberdade só pode ser regrada por si mesma. A liberdade não poderia germinar no solo da opressão e da coação.

Em nenhum momento Emílio foi submetido a qualquer forma de violência, seja física ou moral. A dor física, a humilhação, o ataque à auto-estima, a ameaça ou a privação de afeto ou de outras necessidades básicas não deveriam ser utilizados como mecanismos de controle do comportamento de Emílio. O que ele precisava era conhecer ao máximo as suas potencialidades, capacidades físicas e espirituais, para que pudesse em um dado momento governá-las. A única ordem a ser obedecida deveria ser a de sua natureza. Portanto, o jovem Emílio não precisava ser normalizado pelas convenções da Sociedade Civil. Nesse sentido, Grosrichard argumenta:

A natureza não viola suas próprias leis, não transgride seus próprios limites. Emílio, enquanto ser natural na natureza, e essencialmente normal, não tem que ser normalizado. Está na ordem e não tem que recebê-la. É governado pelo necessário, não pelo obrigatório; pelo possível, não pelo permitido; pelo impossível, não pelo proibido (GROSRICHARD, 1980, p. 29).

Rousseau rejeita as convenções que determinam o que é certo ou errado na Sociedade Civil. Na sua visão, toda a sabedoria dessa sociedade consiste em preconceitos servis e que todos os “costumes não passam de sujeição, embaraço e constrangimento. O homem civil nasce, vive e morre na escravidão; enquanto conservar a figura humana estará acorrentado por nossas instituições” (Rousseau 2004, p. 16). A educação proposta por ele deveria assim ser uma negação das convenções estabelecidas pela Sociedade Civil.

O seu aluno deveria aprender não o que é certo ou errado, mas sim o que é necessário e possível. Teria que conhecer e desenvolver suas faculdades internas e compreender os limites que a natureza impõe a elas. Para que isso realmente acontecesse era fundamental, na visão de Rousseau, que a criança passasse por uma intensa fase de experimentação. As coisas do mundo, as pessoas e suas reações, bem como as próprias faculdades internas teriam que ser objeto de experimentação da criança.

Desde o nascimento a criança está em um permanente processo de aprendizagem. Antes mesmo da aquisição da linguagem. As coisas, as pessoas e suas reações são fontes contínuas de ensinamentos. Rousseau ilustra essas aprendizagens precoces ao discutir as reações dos adultos sobre o choro dos bebês. Os adultos ora agiam com violência, coagindo as crianças; ora as balançavam e mimavam para ficassem quietas e em silêncio. Diante disso, ele fez algumas interrogações. Por que o choro, que é a primeira linguagem da criança, despertava comportamentos tão antagônicos? Por que a criança tem que ser silenciada? E por que não ensiná-la a suportar as adversidades? Ele mesmo respondeu essas questões, dizendo:

É pelo efeito sensível dos sinais que as crianças avaliam seu sentido, não há outra convenção para elas; quando uma criança se machuca é muito raro chorar se estiver sozinha, a menos que tenha a esperança de ser ouvida. Se cair, se ficar com um galo na cabeça, se sangrar pelo nariz, se cortar os dedos, em vez de agitar ao seu redor com um jeito alarmado, ficarei tranqüilo, pelo menos por um tempo. O mal está feito, é uma necessidade que ela o suporte; toda a minha diligência só serviria para assustá-la ainda mais e aumentar sua sensibilidade (...). É nessa que se tomam as primeiras lições de coragem e, suportando sem pavor as dores leves, aprende-se aos poucos a suportar as grandes.(...) Longe de estar atento a evitar que Emílio se machuque, eu ficarei muito aborrecido se ele nunca se ferisse e crescesse sem conhecer a dor. Sofrer é a primeira coisa que ele deverá aprender, e a que ele terá necessidade de saber (ROUSSEAU, 2004, p.70).

Essa passagem evidencia a importância da criança suportar a dor e que o sofrimento é uma aprendizagem necessária. Ao defender que a criança deveria passar por sofrimentos, Rousseau estaria contradizendo suas próprias palavras? Pois na frase seguinte ele diz exatamente o contrário: “por que quereis encher de amargura e de dores esses primeiros anos tão velozes, que não mais voltarão para eles, assim como não voltarão para vós? (...) Assim que eles puderem sentir o prazer de existir, fazei com que o gozem; fazei com que, a qualquer hora que Deus chamar, não morram sem ter saboreado vida” (ROUSSEAU, 2004, p. 72 e 73). Para que não se firme uma falsa contradição, é importante esclarecer sobre os sentimentos de dor e sofrimento dos quais Rousseau estava se referindo na passagem anterior. Uma outra citação do livro Emílio pode ajudar neste esclarecimento:

Se eu tivesse dúvida de que o sentimento do justo e do injusto é inato no coração do homem, só esse exemplo já me teria convencido. Tenho certeza de que, se um tição ardente tivesse caído por acaso na mão daquela criança, teria sido para ela menos doloroso do que aquele golpe leve, mas desferido com a intenção manifesta de atingi-la (ROUSSEAU, 2004, p. 54).

As dores que deveriam ser enfrentadas pelas crianças, na visão de Rousseau, eram as que tinham origem nas forças imponderáveis da natureza. O homem, como a criança, precisava compreender que a natureza era soberana e que era preciso respeitar os limites que essa soberania impunha. Os ferimentos, as doenças naturais, as perdas físicas ou espirituais, a morte precisavam ser enfrentadas pelo homem. Por isso, o exemplo do tição ardente, que por acaso cai na mão da criança, é tão pertinente. A criança sente mais a dor quando ela percebe intenção de alguém em machucá-la. Rousseau, em seus escritos, jamais defendeu a utilização da dor e do sofrimento como um recurso pedagógico.

Nenhum adulto deveria infligir intencionalmente dores e sofrimentos a uma criança com a finalidade de subjugá-la. Mas a criança deveria enfrentar e suportar a dor que se originava de suas próprias ações. A liberdade tem um preço a ser pago. Ou seja, para exercê-la é preciso correr risco e assumir conseqüências. Para Rousseau, o bem-estar da liberdade compensava qualquer ferimento. O seu “aluno muitas vezes terá contusões; em compensação, estará alegre. Se vossos filhos se machucam menos, estão sempre contrariados, sempre presos, sempre tristes. Duvido que a vantagem esteja de seu lado” (ROUSSEAU, 2004, p. 71).

A principal metodologia utilizada na educação de Emílio era a experimentação e, por conseguinte, as conseqüências que dela resultar. Os obstáculos físicos ou as punições deveriam sempre nascer das próprias ações do indivíduo. Na educação proposta por Rousseau pouca importância tinha a noção de certo e de errado. Se não existiam erros a serem corrigidos, a punição não tinha lugar. Se o objetivo era não controlar ou inibir, mas sim conhecer e desenvolver, os mecanismos coercivos, como as violências físicas, não possuíam nenhuma função objetiva.

A conduta da criança deveria ser dirigida por suas próprias forças. Ou seja, o controle deveria ser interno. A liberdade só prevalece realmente se as ações da criança forem conduzidas por um entendimento consciente e não pelo medo das conseqüências externas. A criança, como o homem, não deveria ser controlada pela opinião pública. Para que os indivíduos não sucumbam à estima pública, conseguindo se auto governar, eles precisam se fortalecer física e espiritualmente.

Eis aqui a principal tarefa do preceptor: fortalecer a criança para que um dia ela tenha condições de agir de acordo com suas necessidades reais e assumir as conseqüências de sua liberdade. Ao fim e ao cabo, o que realmente a educação de Rousseau pretendia era resgatar a inteireza do homem – que ele fosse “tudo para si mesmo, fosse uma unidade numérica que só se relaciona consigo mesmo ou com seu semelhante” (ROUSSEAU, 2004, p. 11). E para reafirmar essa pretensão, encerra-se esta monografia com a força viva e atual das palavras de Rousseau:

Sempre em contradição consigo mesmo, sempre passando das inclinações para os deveres, jamais será nem homem para si mesmo, nem para os outros. Será um desses homens de hoje, um francês, um inglês, um burguês; não será nada. (...)Para ser alguma coisa, para ser si mesmo e sempre uno, é preciso agir como se fala; é preciso estar sempre decidido a respeito do partido a tomar, tomá-lo abertamente e continuar sempre com ele (ROUSSEAU, 2004, p. 12).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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ASSMANN, Selvino José (1988). Sobre a política e pedagogia em Rousseau (É possível ser homem e ser cidadão?). Perspectiva; r. CED, Florianópolis, vol. 11, nº 6, pg. 22-45, Jl/Dez.

FRANCISCO, Maria de Fátima S (1999). “Autoridade e contrato pedagógico em Rousseau”. In:

AQUINO, Júlio Groppa (org.). Autoridade e autonomia na escola: alternativas teóricas e práticas. São Paulo: Summus.

GROSRICHARD, Alain (1980). Educação e política em Rousseau. In: Almanaque 11, Cadernos de Literatura e Ensino.

NASCIMENTO, Milton Meira (1988). Política e pedagogia em Rousseau. Perspectiva; r. CED, Florianópolis, vol. 11, nº 6, pg. 13-21, Jl/Dez.

ROUSSEAU, Jean-Jacques (1974). Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens. Tradução de Lourdes Santos Machado. Introdução e notas de Paul Arbousse-Bastidf e Lourival Gomes Machado. Coleção “Os Pensadores”. São Paulo: Abril Cultural.

_______(2004). Emílio, ou Da Educação. Tradução Roberto Leal Ferreira. – 3ª ed. Coleção Paidéia. São Paulo: Martins Fontes.

FORTES, Luiz Roberto Salinas (1987). “Democracia, Liberdade e Igualdade”. In: FORTES, Luis Roberto Salinas & NASCIMENTO, Milton Meira (org.). A constituinte em debate. Colóquio realizado de 12 a 16 de maio de 1986, por iniciativa do departamento de filosofia da USP - Sociedade de Estudos e Atividades Filosóficas (SEAF). São Paulo: Sofia Editora.

_______(1988). Fazer o homem ou o cidadão. Perspectiva; r. CED, Florianópolis, vol. 11, nº 6, pg. 9-12, Jl/Dez.

_______(1989). Rousseau: o bom selvagem. Coleção “Prazer em conhecer”. São Paulo: FTD.